quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O ANDARILHO [Manoel de Barros]


Eu já disse quem sou Ele.

Meu desnome é Andaleço.

Andando devagar eu atraso o final do dia.

Caminho por beiras de rios conchosos.

Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.

Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.

(Ouço harpelos de mim nas latas tortas.)

Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.

Os loucos me interpretam.

A minha direção é a pessoa do vento.

Meus rumos não têm temômetro.

De tarde arborizo pássaros.

De noite os sapos me pulam.

Não tenho carne de água.

Eu pertenço de andar atoamente.

Não tive estudamento de tomos.

Só conheço as ciências que analfabetam.

Todas as coisas têm ser?¹

Sou um sujeito remoto.

Aromas de jacintos me infinitam.

E estes ermos me somam.

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¹ Penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a fisiologia dos andarilhos. Avaliar até onde o isolamento tem o poder de influir sobre os seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc. Estudar talvez a relação desse homem com as suas árvores, com suas chuvas, com suas pedras. Saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer em suas condições humanas, antes de se adquirir do chão a modo de um sapo. Antes de se unir às vergônteas como as parasitas. Antes de revestir uma pedra à maneira de limo. Antes de ser apropriado por relentos como os lagartos. Saber com exatidão quando que um modelo de pásaro se ajustará à sua voz. Saber o momento em que esse homem poderá sofrer de prenúncios, saber enfim qual o momento em que esse homem começa a adivinhar.